Por Clarice Candido
“A gente só dá importância a algo quando falta. Aí damos valor para aquilo”. No dia 3 de novembro de 2020, em meio à pandemia de covid-19, todas as luzes do Amapá foram apagadas. Eram aproximadamente 21h quando a trajetória dos amapaenses foi mudada. Dali em diante, eles enfrentariam um dos mais longos blecautes já vistos no Brasil, o que deixou quase 800 mil pessoas às escuras. Os primeiros dias foram os piores: sem acesso a luz, água e comunicação, a população não entendia o que estava acontecendo. Quando a energia voltaria? O que eles não sabiam até então era que, segundo a investigação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) que seria concluída em dezembro de 2020, houve um curto-circuito em um transformador na Subestação Macapá II, na zona norte da capital, , seguido de uma explosão e um incêndio. Sem o funcionamento dela, houve uma interrupção generalizada, desconectando-o estado das linhas de transmissão que o ligam ao Sistema Interligado Nacional (SIN). O apagão deixaria os amapaenses no escuro por 22 dias, sendo os três primeiros um blecaute total e os outros num esquema de racionamento de energia. O que poderia ser apenas um acidente técnico se transformou em algo muito maior: uma grande crise social, econômica e sanitária sem precedentes que acometeu 13 dos 16 municípios do estado e revelou o quanto a população do Amapá vive à margem das prioridades nacionais.
O blecaute tomou proporções que iam muito além da falta de luz, afetando diversas esferas. Na saúde pública, profissionais se desdobravam para cuidar de pacientes e mantê-los vivos num contexto pandêmico; nas casas, famílias perdiam alimentos, lidavam com prejuízos e conviviam com a falta de segurança; nas ruas, o comércio parou, deixando pequenos empresários com dificuldades. O episódio trouxe um apagamento tanto literal quanto simbólico, com o silêncio de autoridades, a ausência no debate público em escala nacional e a pouca visibilidade jornalística. No meio da pandemia, enquanto o país acompanhava as tensões políticas e as estatísticas de contágio, um estado inteiro foi deixado às escuras. Cinco anos após o ocorrido, o blecaute de 2020 expôs o que há muito tempo vinha sendo ignorado: as desigualdades regionais e o descaso histórico com as populações da Amazônia.
O sistema elétrico brasileiro é complexo e composto por diferentes etapas, que vão desde a geração de energia até o consumo final. A transmissão é responsável por levar grandes volumes de eletricidade das usinas geradoras até as subestações, por meio de linhas de alta tensão que formam o SIN. Já a distribuição é a fase que entrega essa energia aos lares, comércios e serviços públicos. No Amapá, o apagão teve origem em uma falha na etapa de transmissão, mas foi na distribuição que a população sentiu os efeitos mais diretos.
A interrupção na subestação, neste caso, cortou o "cordão umbilical" que ligava o estado a essa rede nacional – o Amapá ao restante do Brasil –, deixando-o isolado e sem a possibilidade de receber socorro energético rápido de outras
partes do país.

Como tudo começou
Entre as vozes que viveram o blecaute está a da designer gráfica Dayanne Farias, que lembra como tudo começou. “Eu estava na casa da minha namorada, e a gente tinha acabado de pedir uma janta. Estava com ela e com a minha sobrinha, que na época tinha três anos. Quando a luz apagou, não estranhamos tanto porque aqui isso é muito recorrente. Estava uma tempestade surreal, com muito raio e vento. Pensamos: ‘vamos esperar voltar’. Passou uma hora, duas e nada”, conta.
Outra vítima da situação foi o guia turístico Antonio Carlos, que também relembra como tudo começou. “Eu estava em casa na hora em que deu o ‘pipoco’. Eu moro num residencial lá perto da onde estourou a barragem. Tinha começado uma chuva e do nada ouvimos um ‘bum’. Corri para a janela pensando que era um transformador, uma batida de carro forte, algo assim. Eu só via o clarão, a coluna de fogo levantando. Todo mundo olhava pela janela, o pessoal corria para a rua porque foi um estrondo muito feio”, afirma o guia.
De acordo com Dayanne, as primeiras horas da tragédia foram as mais confusas, já que a população não tinha certeza do que estava acontecendo ao redor do estado. A confirmação veio, dias depois, da explosão na Subestação de Macapá. “A gente foi descobrindo que faltou luz na cidade toda, mas, no momento que aconteceu, foi realmente bem tenso”, relembra.
“Os três primeiros dias foram cena de apocalípse. As pessoas realmente achavam que o mundo ia acabar. A gente estava no meio de uma pandemia e na época não tínhamos nem um vislumbre de uma vacina”, afirmou a designer.
Para o professor Andrew Costa, da Universidade Federal do Amapá (Unifap), a situação foi um exemplo claro de uma crise humanitária aguda. “Os dias foram passando e a energia não voltava. As pessoas começaram a ver a comida estragando nas bandejas, sem poder fazer nada. Como não havia luz, também não era possível sacar dinheiro. Teve uma corrida enorme aos postos de gasolina e logo ficou difícil conseguir até o básico: gelo, água, qualquer coisa que ajudasse a suportar aquele caos”.
Após os primeiros dias de blecaute total, o governo do Amapá instaurou uma política de racionamento de energia de seis em seis horas e um rodízio entre localidades para que a população tivesse acesso à luz em alguns momentos do dia. “Infelizmente, aqui [no bairro de Santana], a energia ficava duas horas funcionando e depois ia embora, daí ia para outro bairro. Ficou funcionando assim: pulando de cidade a cidade, bem pingado. Isso até restabelecer completamente. Foi muito triste. Nessas idas e vindas, muitos alimentos foram perdidos, aparelhos também. Eu perdi dois ventiladores, uma televisão. Estragaram também seis bandejas de frango e 4 kg de carne no congelador. A pessoa queria conservar uma comida, mas não tinha como, tinha que salgar”, lembra Antonio.
“Foi um processo todo muito humilhante. Por ter acontecido no começo do mês, acabamos perdendo compras de mês porque as coisas foram se estragando. As pessoas estavam perdendo familiares e todos tiveram que se deparar com uma realidade em que precisávamos limitar nosso uso de água, diminuir nossa alimentação, com pouco acesso à internet. Não tínhamos nada”, lamenta o estudante Walinson Bezerra, da Unifap. Ele conta que muitos dos amigos próximos da faculdade saíram de suas cidades natais para estudar na capital. Muitos perderam o contato com familiares devido ao episódio. “Era uma situação de muita aflição e ansiedade. Teve um impacto extremamente negativo”.
Na situação, 90% do sistema elétrico do Amapá entrou em colapso. A empresa Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE) era a concessionária responsável pelas instalações de transmissão que conectam o estado ao Sistema Interligado Nacional. O SIN nada mais é do que uma gigantesca rede de usinas e linhas de transmissão que conecta a maior parte do Brasil, permitindo o intercâmbio de energia entre regiões para garantir o fornecimento aos brasileiros.
Até setembro de 2015, o Amapá vivia num sistema isolado de energia, separado do restante do Brasil. Antes, a maior fonte geradora de energia eram usinas termelétricas abastecidas por óleo a diesel. Segundo a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), distribuidora na época, a ligação ao SIN foi feita por meio do Linhão de Tucuruí, originado no Pará. Uma vez conectado, o Amapá começou a ser regido, por exemplo, pelo sistema nacional de tarifas que define o pagamento de bandeiras (verde, amarela, vermelha 1 e vermelha 2) e reajustes.
O sistema elétrico brasileiro é complexo e composto por diferentes etapas, que vão desde a geração de energia até o consumo final. A transmissão é responsável por levar grandes volumes de eletricidade das usinas geradoras até as subestações, por meio de linhas de alta tensão que formam o SIN. Já a distribuição é a fase que entrega essa energia aos lares, comércios, indústrias, fazendas e serviços públicos. No Amapá, o apagão teve origem em uma falha na etapa de transmissão, mas foi na distribuição que a população sentiu os efeitos mais diretos.
A interrupção na subestação, em 2020, cortou o “cordão umbilical” que ligava o estado a essa rede nacional, deixando-o isolado e sem a possibilidade de receber socorro energético rápido de outras partes do país.
“O sistema amapaense foi conectado ao SIN com uma arquitetura predominantemente radial, o que faz com que qualquer falha em um elo crítico tenha impacto estadual, uma característica típica dos sistemas amazônicos, menos malhados e, portanto, menos resilientes. Além disso, o estado apresenta forte dependência do SIN, sem um parque de soluções distribuídas capaz de mitigar grandes perturbações, o que ajuda a explicar os dramáticos 22 dias de restrições no fornecimento de energia após a falha na transmissão”, afirma o economista Leonardo Frazão, especialista da PSR consultoria do setor de energia. Para ele, o caso demonstrou um problema de redundância, já que a principal subestação que conecta o Amapá ao SIN operava, na prática, sem o transformador reserva, que desde 2019 estava indisponível para manutenção.
O colapso no fornecimento energético prejudicou os amapaenses em vários aspectos do cotidiano. Afinal, sem luz não é possível ter acesso à comunicação, à água e a serviços básicos humanos. O Amapá, em especial, é cortado pela Linha do Equador e cercado pela floresta amazônica, o que confere ao estado um clima marcado por duas estações distintas: períodos chuvosos, de janeiro a julho, e de estiagem, de agosto a dezembro. Segundo o Instituto de Desenvolvimento Social e Urbano (Inorte), sediado em Macapá, a umidade e as temperaturas são elevadas durante todo o ano no estado, com médias que variam entre os 24º C e 32º C. Nos períodos de estiagem, as temperaturas podem passar dos 35º C, com altas sensações térmicas.
Para a cientista política Mónica Banegas, especialista em Justiça Energética do Instituto Pólis, torna-se mais do que nunca necessário pensar em políticas que visem a adaptação para o “novo normal climático”, para dar alívio térmico aos cidadãos. “No Amapá é um calor diferente. A gente se pergunta como as pessoas conseguem viver assim todos os dias. Quando chove, chove muito, e essa chuva intensa foi até um dos fatores que levaram ao incêndio na subestação, por causa de um curto-circuito. Tudo isso também se relaciona com as mudanças climáticas, já que os eventos extremos estão mais frequentes”, explica.
A energia permite que as pessoas vivam com dignidade por garantir condições mínimas de conforto, segurança e saúde, especialmente em um país marcado por desigualdades regionais e climáticas. “Muitas famílias vivem em comunidades onde dividem um freezer ou compartilham equipamentos básicos para aliviar o calor. É preciso ter sensibilidade para compreender que o acesso à energia não é um luxo, mas se tornou uma necessidade para a própria sobrevivência. O poder público e as empresas do setor precisam pensar nas mudanças climáticas de forma transversal, criando soluções que realmente atendam às necessidades dessas populações, que já estão na linha de frente dos impactos e lutam para se adaptar”, analisa a especialista.
Mas, sem eletricidade, a impossibilidade de usar ventiladores ou ar-condicionado se tornou muito grave para a saúde dos amapaenses durante o blecaute. “Para conseguir aguentar o calor, as pessoas pegavam papelão e colocavam no chão para as crianças conseguirem dormir. Elas ficavam fora das casas e dos apartamentos, pegavam um vento e tentavam tirar um cochilo. Mas, quando acordavam, já estavam banhadas de suor devido ao calor daqui”, relembra o guia turístico Antônio.
Para Leonardo Frazão, a tendência é que temporais e altos índices de calor se tornem cada vez mais comuns para a população brasileira como um todo. Mas, para os amapaenses, que já encaram bastante calor e dias chuvosos pela maior parte do ano, a situação tende a se agravar. “O mundo está aquecendo e, como consequência, os eventos extremos têm se intensificado. No ano passado, ultrapassamos globalmente a marca de 1,5° C acima dos níveis pré-industriais”, afirma.

“Com eventos assim mais frequentes, faltará luz mais vezes e por mais tempo, porque são mais graves”, analisa o especialista. Segundo Frazão, uma grande preocupação é também o aumento das sensações térmicas: para quem mora em lares mal ventilados e construídos com materiais pouco isolantes – madeira, amianto, zinco, tijolos sem reboco – essa desigualdade se intensifica.
Moradores de áreas ribeirinhas são grandes afetados, já que suas casas, muitas vezes erguidas sobre palafitas e sem isolamento térmico adequado, acumulam o calor durante o dia e o retêm à noite. O interior das moradias pode ser vários graus mais quente do que a temperatura ambiente, tornando o calor quase insuportável e aumentando o risco de desidratação, intermação e outras complicações para a saúde.
“Quem vive em bairros sem arborização, com temperaturas cada vez mais altas, precisa desses aparelhos [ar-condicionado e ventilador] para manter o mínimo de bem-estar. Mas, para muitos, isso ainda é tratado como um luxo”, completa Banegas.

Com quatro hidrelétricas espalhadas ao redor do estado – Coaracy Nunes, Ferreira Gomes e Cachoeira Caldeirão (no Rio Araguari), e Santo Antônio do Jari (no Rio Jari) – o estado arca com altas tarifas de energia. Quem paga o preço é justamente a população, que agora necessita utilizar esses aparelhos de refrigeração para a própria sobrevivência. A conta de luz sobe de forma significativa e, para muitas famílias amapaenses, já sobrecarregadas financeiramente, pagar por esse consumo é um desafio. Dados do IBGE mostram que, em 2024, o rendimento domiciliar mensal per capita no Amapá é de R$ 1.514, abaixo da média nacional de R$ 2.069
Na época, o serviço era operado pela estatal Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), que seria privatizada no ano seguinte. Com a entrada do Grupo Equatorial Energia, de capital nacional, os cidadãos do Amapá viveram uma transição que trouxe novas tensões ao cotidiano. A promessa de modernização e eficiência deu lugar, para muitos consumidores, ao aumento das tarifas e a cobranças consideradas abusivas. O coordenadorlíder do Movimento de Defesa do Consumidor do Amapá, Ruan Linconl, conta que CEA não conseguia conter os “gatos” de energia, o que mudou com a privatização.
“Antes, já havia sérios problemas estruturais na rede e também na cobrança. Existia muita ligação clandestina, porque, como era uma empresa estatal, não havia um controle adequado nem um sistema de gestão eficiente. Com a passagem para o setor privado, a gente sentiu muito. Começaram a surgir novos problemas, principalmente relacionados ao valor que a gente paga pela energia”, explica.

Consumidores que antes pagavam uma média de R$ 100 na conta de luz hoje pagam tarifas na faixa de R$ 700 a R$ 800. Para o empresário Benedito Moreira, mais conhecido como Bené, a população foi a mais prejudicada nessa transição. “Quando a gente visita a periferia, encontra muitas pessoas reclamando, aposentados, assalariados, que, com o pouco de dinheiro que têm, ficam naquela dúvida: pagam a conta de luz ou comem? Mas é aquela história: quando o pobre grita, ninguém escuta”, afirma Bené, que também integra o movimento de consumidores.
Procurada pela reportagem para dar esclarecimentos sobre a situação e possíveis melhorias estruturais feitos desde a época do apagão, a assessoria de imprensa da Equatorial não se manifestou.
O empresário conta um caso em particular, de uma senhora de 83 anos, moradora do bairro do Pantanal, no centro de Macapá. “Um vizinho um dia me contou: ‘Bené, minha vizinha recebeu uma multa, uma dívida com a Equatorial de R$ 60 mil’. Parecia um absurdo. Ele disse que ela queria vender a casa em que morava porque tinha perdido as esperanças. Fui até lá para tentar ajudar, mas, quando cheguei, descobri que ela já tinha se mudado para o Oiapoque”, município no extremo norte do Amapá.
A dívida, por fim, não era de R$ 60 mil, mas de R$ 74 mil. Segundo Bené, a casa onde a senhora vivia era simples e hoje está abandonada. “Essa senhora foi embora, tentando recomeçar a vida, e infelizmente esse não é um caso isolado. Já visitamos outras famílias na mesma situação, dívidas impagáveis, contas abusivas, e, mesmo assim, a mídia não se interessa por isso”, declara.
“Pelo nível de aparelhos que ela tem em casa, ela se enquadraria na tarifa social. Mas o que a gente vê é uma situação que só piora, como uma bola de neve. É uma senhora que vive de uma aposentadoria de R$ 1.500 e recebe contas de R$ 1.300, R$ 1.400. Como alguém nessa condição vai viver? De que forma ela consegue sobreviver assim?”, questiona o empresário.
A Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE) foi criada pelo governo federal em 2002 como uma política para ajudar pessoas em vulnerabilidade socioeconômica. O programa oferece descontos progressivos na conta de luz, de acordo com o consumo mensal, e tem como objetivo tornar a energia mais acessível para milhares de brasileiros. Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), estima-se que 7,7 milhões de brasileiros ainda não cadastrados no programa podem se beneficiar do desconto.
No entanto, na prática, nem sempre a diminuição do valor da conta é suficiente. De acordo com o Observatório Brasileiro de Erradicação da Pobreza Energética (OBEPE), cerca de 31% das famílias amapaenses vivem em situação de pobreza energética. Em paralelo, 41% da população do estado é atendida pela TSEE,
o terceiro maior índice do país, atrás apenas de Pernambuco e Ceará, enquanto a média nacional está em torno de 20%.
A tarifa sem impostos do Amapá atualmente é de 0,805 R$/kWh, cerca de 4% maior que a média nacional. Segundo Frazão, isso não ocorre por acaso, mas é o resultado de distribuição de baixa densidade populacional e longas distâncias, o que exige mais quilômetros de rede por consumidor, encarece a construção e a manutenção e aumenta o peso dos custos fixos a serem cobertos pela tarifa.
“O Amapá tem base de consumidores pequena e renda média mais baixa, o que limita a diluição desses custos e faz com que a tarifa pese mais no orçamento das famílias. Some-se a isso a necessidade de investimentos adicionais em confiabilidade e resiliência, típicos da realidade amazônica, e a incidência dos mesmos encargos e tributos nacionais cobrados em todo o país”, analisa.
Para algumas pessoas que vivem com uma aposentadoria equivalente a um salário mínimo e têm contas de luz que ultrapassam a casa das centenas, o desconto não faz diferença. Mesmo enquadrado na tarifa social, o cidadão continua preso em um ciclo de endividamento, em que o gasto com energia consome quase toda a renda mensal. O professor Jadson Porto, da Unifap, especialista em Geografia e Desenvolvimento Regional, afirma haver uma contradição no caso, uma vez que “o Amapá consome muito mais nas classes residencial e pública do que no setor industrial. Cerca de 75% do consumo está nessas duas categorias. Isso mostra que o uso de energia aqui é muito mais social do que produtivo”.
Quanto à qualidade do serviço, historicamente, o Amapá sempre apresentou alguns dos piores indicadores de continuidade do fornecimento de energia no país. Segundo a ANEEL, no início da década de 2010, os consumidores chegavam a ficar, em média, mais de 70 horas por ano sem eletricidade. Em 2015, esse tempo ultrapassou 80 horas, acompanhados de mais de 60 interrupções anuais por unidade consumidora.
"Para conseguir aguentar o calor, as pessoas pegavam papelão e colocavam no chão para as crianças conseguirem dormir. Elas ficavam fora das casas e dos apartamentos, pegavam um vento e tentavam tirar um cochilo. Mas, quando acordavam, já estavam banhadas de suor devido ao calor daqui."
- Antônio Carlos, guia turístico
A partir de 2016, no entanto, houve uma queda expressiva nos principais indicadores de qualidade. O primeiro deles é o DEC (Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora), que mede quanto tempo, em horas, os consumidores ficam sem energia ao longo do ano. O segundo é o FEC (Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora), que indica quantas vezes a energia cai no período de um ano. Entre 2018 e 2019, o DEC caiu para a faixa de 38 a 40 horas anuais, enquanto o FEC recuou para algo entre 13 e 20 interrupções.
Foi apenas em 2022 que o DEC voltou a subir para cerca de 44 horas e o FEC para quase 20 interrupções. “A antiga CEA não cumpria padrões mínimos de qualidade e equilíbrio econômico-financeiro. Mesmo assim, esses indicadores seguem muito acima da realidade média do Brasil, onde o DEC gira em torno de 11 horas e o FEC em torno de 5 interrupções anuais”, afirma Frazão.
“A dispersão das comunidades, o alto custo logístico e a dependência de térmicas a diesel fazem com que parte da população amazônica continue com atendimento caro, poluente e muitas vezes com poucas horas de fornecimento por dia. No Amapá, por exemplo, o Oiapoque permanece como sistema isolado, com cerca de 29 mil habitantes, segundo dados do Portal de Acompanhamento e Informações dos Sistemas Isolados”, conclui.
Em fevereiro de 2021, a ANEEL impôs concessionária LMTE a maior multa já aplicada pelo órgão, no valor de R$ 3,6 milhões. O Operador do Sistema Elétrico (ONS), responsável pela monitoração do fornecimento de energia, encontrou diversas irregularidades em usinas, na rede de distribuição e na Subestação Macapá II. Em nota para a imprensa na época, a LMTE afirmou que recorreria da decisão, mas teve seu recurso negado em âmbito administrativo pela ANEEL. A concessionária optou, então, por contestar a penalidade na Justiça, numa disputa que se arrasta até hoje.
“No auto de infração cabe recurso e a empresa irá recorrer dentro do prazo estipulado. As causas que levaram a contingências múltiplas, paralisando dois transformadores na subestação Macapá, no dia 3 de novembro de 2020, ainda estão sendo apuradas. Já se sabe, contudo, que um conjunto de fatores levou à perturbação do sistema de eletricidade do Amapá, entre eles falta de redundância, falta de planejamento setorial, falta de sistema especial de proteção (SEP), que deveria estar previsto no projeto original, conforme recentemente recomendado no Relatório de Análise e Perturbações (RAP) do ONS”, afirma a nota da LMTE, atual Energisa Amapá.
O Ministério Público Federal (MPF), a fim de tentar acudir os consumidores, moveu uma ação de indenização de R$ 70 bilhões por danos morais para famílias afetadas pelo apagão. As empresas e agentes públicos processados foram ANEEL, ONS, LMTE, CEA, EPE (Empresa de Pesquisa Energética, estatal federal) e a União. O órgão detalhou a responsabilidade de cada agente envolvido na ocasião, considerada “o maior desastre de segurança energética da história do Sistema Interligado Nacional”, em relação à prolongação do problema.
A investigação apontou uma série de falhas: o descumprimento de critérios de segurança pela LMTE, a negligência do ONS quanto à confiabilidade do sistema e o não cumprimento, por parte da CEA, do rodízio de energia durante o blecaute. A ação também questiona a omissão da ANEEL na fiscalização do setor e a falta de planejamento da EPE.
O Ministério de Minas e Energia (MME) também criou um gabinete de crise, enviando uma comitiva ao estado para averiguar as medidas tomadas para que ocorresse o restabelecimento de energia. O órgão ainda chegou a informar três prazos para que a energia fosse estabelecida, nenhum dos quais cumprido.
Para Frazão, o blecaute de 2020 escancarou que a energia não é apenas um insumo técnico, mas um direito que habilita todos os outros: sem luz, falta água, saúde, renda, educação e segurança. “Os desafios para combater a pobreza energética e garantir justiça no setor elétrico são grandes em todo o Brasil, e ainda maiores na Amazônia, onde os custos logísticos são altos, a infraestrutura é mais precária e a vulnerabilidade socioeconômica é mais profunda. A agenda de resiliência do setor precisa incorporar um olhar específico para essas realidades amazônicas, em tarifa, qualidade e acesso, se quisermos tratar a energia de fato como um direito e não como um privilégio geográfico ou de renda”, analisa.
Apesar dos esforços do governo, o sentimento da população amapaense foi de abandono, principalmente pela situação chegar ao ponto crítico que chegou. Para o estudante Walinson, os cidadãos acabaram pagando por um erro que não cometeram. Ele afirma que o apagão poderia ter sido evitado se houvesse mais responsabilidade e acompanhamento por parte das autoridades. Na avaliação dele, o que faltou foi gestão e, principalmente, sensibilidade com as pessoas que sofreram as consequências de uma falha que não era delas.
A designer Dayanne Farias concorda e afirma que a situação de instabilidade elétrica é “desumana”, sobretudo em áreas urbanas. “Precisamos de energia elétrica para tudo hoje em dia. Para nos comunicar, para os hospitais funcionarem, para basicamente tudo. Energia é um direito muito importante e, infelizmente, na Amazônia a gente é muito negligenciado nessa questão da estabilidade. Só quem vivenciou tudo que a gente viveu sabe o quão importante é ter um fornecimento que funcione, que seja de qualidade e que não nos deixe na mão”, reflete.
Após 22 dias no escuro, o apagão no Amapá chegou ao fim. Cinco anos depois, o episódio permanece na memória da população, que espera que situações como essas não voltem a acontecer. O blecaute em 2020 no estado expôs uma realidade difícil de encarar: os amapaenses foram deixados à espera da energia, de atenção e de dignidade, às margens da sociedade. Agora, o que fica na mente do amapaense é o medo da energia faltar e, se faltar, quando ela vai voltar?
“Depois do apagão, todo mundo criou um grande trauma. Hoje tenho vários amigos que, quando uma chuva forte cai, ficam com medo. A gente não fica calmo. Eu tenho um amigo que passou dois anos tendo crises de ansiedade toda vez que chovia muito forte, porque tinha esse medo que a energia fosse embora e a gente passar por todo aquele terror de novo”, afirma Dayanne.
Confira a linha do tempo do apagão (2020)

A saúde pública na escuridão
Todos os dias pareciam os mesmos para a epidemiologista Sonja Leite. Ela trabalhava na área da saúde há mais de 30 anos, dedicando-se ao serviço público desde o começo da formação. Ela tinha uma vida simples, mas feliz. Suas filhas já estavam crescidas e a vida, apesar do desassossego de uma rotina de hospital, parecia tranquila.
Tudo isso foi por água abaixo quando a pandemia chegou. Quase que da noite para o dia, todos os comércios fecharam, as escolas ficaram sem aula, mas hospitais, lotados. O surto do coronavírus foi um baque para todos, mas para quem trabalha com saúde foi pior. Sonja, com amor à profissão, encarou o problema de frente.
Eram dias de trabalho árduos, praticamente sem comer, sem beber, e com a mente que só se ocupava com pensamentos sobre a pandemia. “Tu ter que continuar com a tua rotina, quando a orientação era se isolar e ao mesmo tempo estar diante de uma pessoa doente com algo que tu não conhece é desesperador”, afirmou Sonja.
O que não estava fácil piorou: quase todo o estado do Amapá ficou sem luz. Dos 16 municípios, 13 ficaram sem acesso a energia elétrica. No primeiro momento, Sonja pensou que aquilo passaria. Afinal, os picos de energia e a falta de luz eram comuns na rotina dos amapaenses, ainda mais quando chovia, exatamente como aconteceu naquela noite. A luz, porém, não voltou. Foram dias assim: a população viveu sem resposta e aos poucos foram se desesperando.
Mas, com o tempo, trabalhar no hospital durante pandemia e blecaute simultâneos acabou ganhando uma rotina: ela chegava com seus equipamentos de proteção individual já completamente esterilizados, para evitar contaminação, e já se concentrava para encarar o plantão.

Sonja precisou ficar isolada de familiares durante o apagão para não correr risco de contaminação
Crédito: Ricardo Beda
"Acho que uma das memórias mais marcantes era que a única luz que eu vi durante a noite foi a do carro funerário trazendo ele, no escuro"
- Andreia Tavares, estudante
“Eu lembro que eu saía de casa, mas antes tomava uma água e ia no banheiro para esvaziar a bexiga. Quando eu chegava no hospital, depois de colocar a luva, o jaleco, o capote, e tudo mais, eu não tomava mais água até o final do dia. Nós entrávamos de manhã e saíamos no final da tarde”, relembra Sonja.
O que em si já era grave durante a pandemia se transformou numa calamidade generalizada. Com a falta de energia, o abastecimento de água foi prejudicado pelo estado afora. Sem luz, a Companhia de Águas e Esgoto do Amapá (CAESA) não podia acionar as bombas de captação, e a distribuição foi interrompida. A população, em meio à crise de covid, não tinha água para se lavar nem para beber.
Segundo a designer Dayanne Farias, a população na época precisava tomar banho na orla do Rio Amazonas e beber água contaminada. “As pessoas levavam bebês, crianças, ainda não vacinados, para se banhar. A gente sabe que hoje em dia aquela parte do Rio Amazonas não é mais própria para banho, porque infelizmente o esgoto da cidade vai todo para lá”, afirmou. Atualmente, quando se caminha pela orla do Rio Amazonas, na cidade de Macapá, é possível localizar tubos em que são despejados litros de esgoto todos os dias. O local fica ao lado da Concessionária de Saneamento do Amapá (CSA).
“Eu trabalho em hospital, mas não gosto de dizer que trabalho com doença. Eu trabalho buscando saúde. A intenção é evitar que as pessoas adoeçam, mas sem que as necessidades básicas sejam garantidas, isso se torna quase impossível. Como prevenir doenças diarreicas onde não há sistema de esgoto? Onde não existe um tratamento de água com qualidade e distribuição para toda a população? É uma incoerência. A saúde de qualquer ser humano depende dessas condições mínimas e é dever do poder público garanti-las”, declara Sonja.
No fim dos plantões, quando parecia que Sonja poderia descansar, a epidemiologista não podia ao menos fazer a higiene para se livrar de possíveis contaminações. “Por muitas vezes eu não conseguia tomar um banho. Chegava, dormia, no calor, com carapanãs [pernilongos], e de manhã tinha que vir trabalhar. E não podia dizer ‘não vou’”, lamenta.
O sistema de saúde do Amapá foi sufocado durante o período, devido à soma da pandemia com o apagão. Fora dos hospitais, o cenário não era diferente. A população vivia sem notícias, sem telefonia e sem respostas do poder público. O caso da assistente social Priscilla Mendes foi particularmente delicado. Grávida de seis meses de sua primogênita, Clarice, ela tinha medo de ser contaminada pela doença. “Claro, não foi bom para ninguém. Mas eu senti bem mais: com a bebê chutando toda hora. Foi bem tenso: a barriga já estava enorme”, afirma.
“Tive os cuidados do pré-natal, mas foi um caos ir para o hospital porque não havia energia, apesar dos geradores. Mas era bem ruim: a energia faltou, a água faltava, até gasolina estava em falta. Era um caos”, relembra.
Para a estudante Andreia Tavares, da Unifap, o medo e o luto andaram juntos. Após perder o pai para a covid-19 em outubro de 2020, a universitária teve que lidar com a situação sem saber exatamente o que estava acontecendo. “Foi um momento muito angustiante. Eu senti como se as coisas estivessem me sufocando. Principalmente à noite, porque ficava muito quente e a gente não tinha muito o que fazer, só suportar até o dia”, lembra.
De acordo com o boletim oficial de novembro de 2020 do Governo do Estado do Amapá, até o dia 21 daquele mês, pouco mais de duas semanas após o início do blecaute, o estado já somava 56 mil casos confirmados e 789 mortes por covid-19. Naquela semana, foram 1,4 mil novos registros e 12 óbitos, o que mostra que, mesmo com a energia parcialmente restabelecida, a crise sanitária ainda se agravava.
À ONG Repórter Brasil, a Companhia de Eletricidade do Amapá afirmou que “desde os primeiros dias de apagão a empresa realizou manobras para atender os circuitos onde estão localizados hospitais, maternidade, centros de tratamento a pacientes com Covid-19 e Unidades de Pronto Atendimento com energia 24 horas”.
Entre as muitas perdas do período, Andreia também perdeu um primo próximo para a covid. “Acho que uma das memórias mais marcantes era que a única luz que eu vi durante a noite foi a do carro funerário trazendo ele, no escuro”, conta Andreia.
Para Sonja, a pandemia se agravou devido ao fato de a medicina até então desconhecer o comportamento do vírus, de onde ele veio e como atua no corpo. “Agora imagine fazendo tudo isso num apagão, sendo que uma das principais medidas de controle e cuidado era a higienização das mãos e não havia água na cidade. Os hospitais, os serviços públicos, tinham energia porque possuíam geradores, mas o resto da cidade não tinha”.
Dados são do último boletim de acompanhamento da covid-19, lançado em março de 2023
Fonte: Governo do Estado do Amapá
A vacinação contra a covid-19 começou no Amapá em janeiro de 2021, quando o Brasil estava recebendo as primeiras doses. O primeiro lote, que tinha 31 mil doses de CoronaVac, do Instituto Butantan, trouxe esperança para a população. Os primeiros grupos vacinados no estado foram os prioritários: os profissionais da saúde, idosos acima de 60 anos e indígenas. Desses, 15 mil doses foram reservadas para profissionais da saúde que estavam na linha de frente.
A médica conta que contraiu o vírus duas vezes durante a pandemia. Por sorte, não teve grandes complicações ou sequelas porque já estava vacinada. Segundo ela, se não fosse pelos altos cuidados que teve na época, certamente o cenário teria sido diferente. Quando finalmente acabava o turno do hospital, ia direto para a sala de higienização, onde limpava todos os equipamentos com água sanitária antes mesmo de sequer sair do local. Já em casa, Sonja fazia questão de limpar até o pneu do próprio carro, com água do rio, para não correr riscos de contaminação.
Para Sonja, o começo da vacinação foi um grande alívio. “Não podíamos deixar de trabalhar porque as pessoas no hospital dependiam do meu estudo, do meu trabalho para continuar sobrevivendo ou para ter ao menos uma oportunidade”, reflete Sonja.
Com o tempo, as pessoas foram se vacinando, mas até o período do blecaute a população ainda vivia sem vacina. “A gente tinha todas aquelas medidas restritivas, mas quando você não tem condições de ter como comer, de ter água para beber, você não vai se preocupar em passar álcool em gel e nem em manter um distanciamento. As pessoas não usavam máscara, porque não tinha como. Elas estavam três dias sem tomar banho, ninguém queria usar máscara ou passar álcool em gel”, afirma Dayanne.
Na época, foi necessário montar leitos de UTI em tendas e locais improvisados espalhados pelo estado a fim de tratar pacientes. O hospital universitário da Unifap teve um papel extremamente relevante, já que era o local para onde casos mais delicados eram encaminhados.
“Eu nunca vou esquecer de uma conversa que eu tive com a minha mãe num desses dias. Ela tinha mencionado que tinha ido para o hospital e não tinha conseguido se higienizar. Quando chegou em casa não tinha água. Estávamos sem água na geladeira e as prateleiras do supermercado estavam vazias. Ela rodou por vários mercados para procurar uma mísera garrafa de 500 ml. Quando ela chegou, ela falou para mim, aos prantos: ‘minha filha, nunca na minha vida eu achei que fosse chorar de sede”, lamenta a designer.
Foi apenas em maio de 2023 que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou o fim da emergência em saúde pública pela covid-19, devido à redução de casos confirmados da doença. Ainda assim, aquela época deixou marcas nos profissionais de saúde do estado, pelo caos vivido.
“A pandemia já foi um impacto muito grande, foi algo que mudou toda a nossa perspectiva, toda nossa experiência que tínhamos diante de todas as doenças que já conhecíamos. Foi uma experiência ímpar e eu espero que continue sendo”, espera Sonja.
A epidemiologista diz que, devido às dificuldades vividas pelos profissionais da saúde, muitos deles acabaram adoecendo para além da covid, mas no campo emocional. Ela conta que no começo não imaginava que fosse se desestabilizar, mas, quando os casos da doença deram uma amenizada, ela precisou se afastar durante 90 dias para tentar se recuperar dos traumas e dos desafios do período. A médica precisou se isolar de familiares e amigos para que não houvesse um risco de contaminação, uma das partes mais difíceis do momento. Afinal, a solidão foi
também uma consequência dessa crise para algumas pessoas.
Agora o que fica com Sonja é muito aprendizado e um reconhecimento da importância da eletricidade na rotina e na sobrevivência. “Hoje se nós tivéssemos um blecaute total, mundial, tudo ia parar, tudo. Porque se a gente bem pensar tudo depende de energia elétrica. Então, hoje o que mudou foi em termos da nossa consciência mesmo, além da gente reconhecer a importância da energia, de preservar a questão de tudo que gera essa energia.”
“Depois de tudo isso, eu passei a valorizar muito mais o contato, a família, as memórias que a gente cria. A gente deixa de se preocupar tanto em ter e começa a dar mais valor às pessoas, aos momentos. Foi um aprendizado para a vida inteira. E, acima de tudo, aprendi que toda vida importa, toda vida. Porque um paciente é sempre o amor da vida de alguém. A gente só dá importância a algo quando falta, aí damos valor para aquilo”, conclui a médica.

Segurança em crise
Quando as luzes se apagaram ao redor do Amapá, o medo foi um sentimento quase inevitável. Afinal, sem luz, a população fica sem referência, sem comunicação e, principalmente, sem segurança, As ruas, antes com grande circulação diária da população, ficaram três dias na escuridão completa. A consequência foi o aumento dos relatos de furtos, invasões e assaltos, principalmente em bairros periféricos.
No dia 5 de novembro, no segundo dia de blecaute total, a prefeitura de Macapá decretou estado de calamidade pública na capital por 30 dias e, num contexto de pandemia, a sensação de desamparo se colocou em várias esferas. A força policial ficou defasada, precisando contemplar diversas situações da crise ao redor de todo o estado. A falta de eletricidade fez com que sistemas de segurança, como câmeras e semáforos, parassem de funcionar, aumentando a possibilidade desses crimes acontecerem.
Segundo informações da base de dados Fonte Segura, mantido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre os dias 3 a 19 de novembro de 2020 foram registrados 192 roubos, 172 furtos e 47 casos de lesão corporal no Amapá. Além disso, 16 crimes violentos letais foram contabilizados, com uma média de uma morte violenta por dia, e quatro por intervenção policial.
“Alguns amigos meus que moravam em áreas periféricas passaram por situações muito caóticas. Com tudo escuro, as pessoas ficaram muito vulneráveis. Houve invasões a domicílio, assaltos, furtos… Muita gente teve medo de sair de casa. A cidade ficou completamente entregue”, relembra a designer Dayanne Farias, moradora da capital.
Enquanto bairros centrais de Macapá e regiões próximas a hospitais tiveram acesso parcial à energia devido aos geradores, nas áreas mais afastadas o cenário foi diferente. Segundo a moradora, alguns municípios chegaram a ficar 22 dias no apagão completo, sem ao menos possuir o racionamento de energia.
A estudante Andreia Tavares, da Unifap, também lamenta a situação que os moradores do interior enfrentam diariamente e afirma que eles são os que mais sofrem. “Infelizmente, o Amapá continua sendo um estado muito pobre, mesmo com todas as riquezas naturais que tem. Aqui, as pessoas têm direito a praticamente nada”.
“Quem tinha dinheiro conseguiu passar a temporada do apagão fora do estado. Mas a maioria não podia, né? Era preciso ter grana pra ficar 10, 15, quase 20 dias longe daqui. A gente sofreu muito, a cidade inteira sofreu. Doía ver as pessoas passando por aquilo, sem ter o que fazer, só tentando aguentar. Era impossível não se compadecer”, afirma o comerciante Cláudio Bezerra, vendedor de artesanato.
O microempresário foi um dos poucos a não serem afetados pela falta de luz. Por morar numa zona próxima de hospitais e bancos, no centro de Macapá, o empresário ficou apenas um dia sem luz devido aos geradores locais. Mas, segundo o empresário, a falta de segurança pública foi extremamente difícil. “À noite a gente tinha que apagar as luzes, fechar a porta para não ser atacado pelas pessoas. Eles achavam que éramos ricos e, por isso, estávamos sendo privilegiados por alguém”, relembra.
Claúdio afirma que, diferente dos demais moradores, por ter energia, tentava ao máximo ajudar emprestando tomadas para que carregassem celulares e doava água aos que precisavam. Apesar da presença da criminalidade ao redor do estado, o senso de coletividade foi importante para os amapaenses enfrentarem a crise. Dayanne relembra um episódio que, para ela, foi um dos mais marcantes do período. “Durante o apagão, eu lembro que bateu um desespero enorme, principalmente no início. A gente via muitos relatos nas redes sociais de pessoas dizendo: ‘Eu tenho três filhos pequenos, estamos sem água, sem alimento’. Foi então que alguns coletivos daqui começaram a se mobilizar. Eu lembro de um, ligado à juventude e à política, que organizou uma campanha pedindo doações de cestas básicas, velas e outros itens para distribuir às famílias mais afetadas”.
“Quando vi essa postagem, mostrei para a minha mãe e decidimos nos juntar para ajudar. Mesmo no meio da pandemia, a gente acabou furando o isolamento para se encontrar e passar a noite à luz de velas montando várias cestas básicas. No dia seguinte, levamos tudo para o coletivo distribuir. Todo mundo se virava como podia. Quem tinha energia durante o rodízio congelava pacotes de gelo para ajudar quem precisava guardar insulina, porque tinha muita gente com diabetes em casa sem poder refrigerar o remédio. Era um pedindo ajuda ao outro. A população se ajudou muito, porque, se fosse depender só da gestão pública, a gente teria ficado numa situação ainda pior”, relembra.
A ação policial, na verdade, foi repressiva em alguns momentos. Revoltados com a situação da falta de luz, a população foi às ruas na noite do dia 6 de novembro para protestar, quando o apagão se arrastava para o terceiro dia. Pneus e materiais inflamáveis foram queimados em vias públicas para chamar a atenção das autoridades e da imprensa sobre o que estava acontecendo no estado. O resultado foi um confronto, com manifestantes sendo alvejados com balas de borracha e bombas de efeito moral. Para a agência Amazônia Real, a Polícia Militar na época alegou ter “reforçado o policiamento ostensivo em toda capital para proteger a população”.
Vendo as proporções de toda a situação, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) deflagrou a “Operação Blecaute” a fim de garantir segurança e mobilidade aos amapaenses. Com o início no dia 14 de novembro, a ação tentou restabelecer a ordem no Amapá, enviando um reforço de agentes do Sistema de Pronta Resposta Federal. Apesar do reforço, a sensação de segurança demorou a chegar para os moradores, que afirmavam que tudo o que se via nas ruas era o oposto: o medo persistia e as denúncias de assaltos, furtos e invasões aumentavam.
Segundo Ruan Linconl, do Movimento de Defesa do Consumidor do Amapá, depois de tantos anos de descaso do setor público e privado, os amapaenses, principalmente os mais vulneráveis economicamente, estão cansados de lutar pelos próprios direitos. “A última grande manifestação que aconteceu aqui foi durante o blecaute. As pessoas estão desanimadas, fracas para lutar. Até hoje tem gente lutando na justiça para recuperar prejuízos”, reflete. “O clima no estado já estava bem pesado por conta da pandemia e, com a situação do apagão, pareceu que abriu um buraco pro nosso povo. A gente sentiu o abandono, principalmente das pessoas que deviam nos amparar”.
De acordo com informações da Polícia Federal, entre os dias 6 a 12 de novembro de 2020, foram registrados mais de 70 atos contra o blecaute. Um dos protestos tomou proporções tão grandes que bloqueou a Zona Norte de Macapá por 8 horas.
“Acredito que o que mais mudou de 2020 para cá é que, na minha visão, foi ver que nossos próprios representantes não se importam tanto assim conosco e que quem se importou mesmo foi o povo, nós fomos deixado às traças”, lamenta Andreia.
Dentre vários ferimentos aos direitos sociais, percebe-se que a segurança pública foi mais um dos que não foram devidamente contemplados para a sociedade amapaense. O blecaute expôs o quanto a desigualdade social potencializa a vulnerabilidade das populações mais pobres e periféricas, já que, enquanto parte da cidade contava ao menos com geradores e algum apoio das autoridades, parte da população ficou entregue à própria sorte, enfrentando o medo, a violência e a ausência de respostas.

Reprodução: Repórter Brasil

Os pequenos negócios
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Aldemar Pessoa é proprietário da lanchonete Aldemar Lanches. O estabelecimento, que fica no Mercado Central de Macapá, anda sempre lotado de turistas e moradores locais. Para conseguir um lugar para um café da manhã reforçado, os clientes precisam chegar cedo, principalmente aos domingos, quando a demanda duplica. Aberta desde 1976, a lanchonete virou tradicional na região. O pedido especial, favorito dos clientes, é o pão da Dani, um pão com ovo, queijo e presunto, completo para começar o dia.
Além de Aldemar, quem ajuda a comandar todo o funcionamento é Rosa. Casados há 50 anos, ambos começaram um negócio familiar. Dos três filhos, dois seguiram caminhos profissionais diferentes, mas Dani, a filha do meio, trabalha quase todos os dias ao lado dos pais.
Mas, com a pandemia, a situação se complicou. Durante o confinamento inicial, só podiam circular nas ruas os trabalhadores mais essenciais ou de situações de emergência. Também foi estipulado barreiras para conter essa movimentação de pessoas nas vias para não aumentar o contágio da covid. A Aldemar Lanches precisou ficar um tempo fora de funcionamento, devido ao isolamento social necessário para o momento. Pensando em formas de se adaptar à nova rotina, seu Aldemar e dona Rosa começaram a vender lanches da cozinha da própria casa. Os clientes ligavam, faziam o pedido, eles produziam o alimento e os próprios consumidores iam buscar no portão da casa de Rosa e Aldemar. Todo esforço para não ficar sem trabalho, segundo o empreendedor.
Aldemar e Rosa, donos do estabelecimento no Mercado Central de Macapá, afirmam ter pedido todo o estoque devido ao apagão
Crédito: Clarice Candido
A rotina funcionou por um tempo e, com o início do blecaute, eles precisaram continuar no mesmo esquema. O apagão foi um grande choque para o empreendedor, que em pouco tempo perdeu todo o estoque, especialmente produtos refrigerados. “Como eu trabalho com lanches, preciso sempre ter bastante aqui e em casa. A gente produz bastante, tudo o que os clientes consomem somos nós que produzimos. Eu tava com meus freezers todos lotados de lanches, de polpas de fruta, com todas essas coisas. Mas eu perdi tudo, sem ter pra quem reclamar. A gente precisou segurar as pontas”, relembra Aldemar. Ele conta que, para não ter perda total de seus produtos, doou a maioria para quem precisava.
Para muitos comerciantes, as quedas constantes de energia representaram grandes perdas porque, além de comidas estragadas, muitos equipamentos foram queimados. Segundo o comerciante, a situação seria “normal” e ele não foi o único a sofrer as consequências do apagão no próprio estabelecimento. Bené é dono da sorveteria e pizzaria Plutão, no Centro de Macapá, e também foi impactado de forma parecida. Pela falta de refrigeração, perdeu boa parte do estoque de sorvetes, cerca de 80 baldes de 10 litros cada.
Ambos contam que não tiveram a opção de comprar um gerador porque no primeiro dia as lojas já estavam sem estoque do produto. “Na época, houve uma corrida enorme atrás de geradores portáteis. Todo mundo queria um, porque ninguém sabia quando a energia ia voltar. As pessoas faziam fila onde ainda tinha pra vender. Um gerador que custava cerca de R$ 3.500 rapidamente passou a R$ 7.000, e mesmo assim não se encontrava mais. Muita gente começou a procurar em Belém, mas lá também já tinha acabado de tanto amapaense tentando comprar”, conta Bené.
A única solução que o dono da Plutão encontrou foi comprar peça por peça, em partes, e montar o próprio gerador. Os portáteis, ele relembra, conseguiram comprar em Belém depois de um tempo, o que foi um alívio. “Nós, como comerciantes, sofremos muito. Não foi uma situação anunciada para nós, nós perdemos muito.”
Com a alta demanda e a necessidade por itens essenciais, como água e alimentos não perecíveis, os produtos inflacionaram de forma significativa e, no desespero do risco de desabastecimento, a corrida para a compra foi grande. Estoque de gelo, água mineral, postos de combustível e rede hoteleira sofreram uma alta no consumo. Produtos como velas, essenciais num contexto de falta de luz, chegaram a sofrer uma inflação de quase 100%. Na época, os comerciantes recorreram ao Instituto de Defesa do Consumidor do Amapá (Procon-AP), que realizou uma fiscalização e multou alguns estabelecimentos que forneciam os produtos para revenda.
Sem energia, bombas de combustíveis pararam de funcionar e apenas os postos com geradores próprios conseguiram operar. Os demais só abriam nos curtos períodos em que o fornecimento era restabelecido durante o racionamento. As agências bancárias também foram afetadas, com caixas eletrônicos e máquinas de cartão inoperantes, impedindo saques e pagamentos, o que impediu que muitos amapaenses pudessem fazer compras essenciais.
“As pessoas realmente achavam que o mundo ia acabar. Você ia no mercado e não conseguia comprar vela, água, porque as pessoas estocavam. O preço de um galão de água de 5 litros, que antes era R$ 7, chegou a ser vendido por R$ 30. Isso porque todos estavam precisando, não tinha água na torneira para beber”, relembra Dayanne.
Quem não tinha dinheiro para comprar os produtos inflacionados dependia de doações vindas da própria comunidade. Alguns preferiam correr o risco de contaminação na água, ao ingerir de poços artesianos ou até do Rio Amazonas, do que ficar sem ter o que beber.
O guia turístico Antonio Carlos também sofreu no ramo de viagens. Ele conta que, já que passava longos períodos sem comunicação, não conseguia entrar em contato com os turistas. “Íamos até o aeroporto, onde tinha gerador, pegava o turista e levava para algum hotel, e nem todos [os hotéis] tinham energia. Mas trabalhar era quase impossível porque não tinha como entrar em contato com os turistas. Não tinha sinal. Quando conseguíamos carregar um pouquinho o telefone era por pouco tempo e, quando as mensagens chegavam, já tinham um ou dois dias de atraso. Foi um período de muita tristeza e de muitos prejuízos.”
“Teve comerciante que fechou as portas. O pequeno comerciante principalmente, com freezer cheio de frango, calabresa e outros produtos que se estragam com facilidade. Foi tudo para o lixo. Você via as pessoas chorando, sem poder fazer nada”, relembra Antonio.
Manter um negócio aberto durante o blecaute foi um grande desafio. Com o estado às escuras, os comerciantes tentavam equilibrar prejuízos e responsabilidades de manter o pagamento dos funcionários em dia. “Não deixei de pagar meus funcionários. Mesmo durante toda aquela situação, com menos clientes e sem luz, não podia deixar de dar o salário a eles. Afinal eles são muito leais aqui há muitos anos”, afirmou Aldemar. Muitos patrões não puderam fazer o mesmo e precisaram demitir trabalhadores para não decretarem falência, o que aumentou o desemprego na época. Muitos desses funcionários precisaram ficar em casa, sem luz, sem ter como trabalhar e, logo, sem ter como receber.
Segundo informações da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes no estado (Abrasel), que representa cerca de 1.400 empresas – destas, 900 localizadas em Macapá – a maior parte dos empreendimentos locais é formado por microempresas e pequenos negócios, muitas vezes familiares, com até cinco funcionários. Ainda de acordo com o órgão, o blecaute levou a um fechamento significativo desses estabelecimentos, demissões e perda total de receita e, num contexto em que a população já enfrentava dificuldades para armazenar alimentos, o fechamento desses comércios agravou ainda mais a insegurança alimentar. “Até hoje as pessoas que recorreram pelos seus prejuízos não ganharam nada”, analisa Bené.
De acordo com estimativas do Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE), órgão que reúne representantes de trabalhadores do setor elétrico, o prejuízo para a economia devido ao blecaute foi de R$ 190 milhões, levando em consideração o que não foi produzido durante o período. O cálculo foi feito com base no Produto Interno Bruto (PIB) do Amapá em 2019 e considerou o impacto da paralisação total pelo tempo que o estado ficou sem eletricidade. Na época, o Estadão teve acesso a um documento assinado pelo presidente da distribuidora CEA, Marcos do Nascimento, que afirmou que a empresa conseguiu suprir apenas 15% da demanda diária por energia elétrica.
Atualmente, Aldemar Pessoa e sua equipe se reergueram, e a lanchonete continua funcionando a todo vapor no Mercado Central de Macapá. “No fim, deu pra sobreviver. A gente sobrevive a qualquer caos, qualquer situação. Nós precisamos sobreviver”, afirma, com esperança. Assim como ele, centenas de comerciantes amapaenses seguem firmes, tentando até hoje conseguir uma indenização na justiça mas, para muitos, ainda sem resposta.

A cobertura jornalística
O blecaute que deixou o Amapá no escuro por mais de vinte dias, em novembro de 2020, também revelou outro tipo de apagamento enfrentado pela população: o da cobertura jornalística nacional. Enquanto moradores lidavam com prejuízos materiais, insegurança, desinformação e um cotidiano atravessado pela pandemia, a imprensa fora do estado acompanhou o episódio de forma breve, distante e incapaz de traduzir a dimensão humana da crise. Em um cenário pandêmico marcado por pautas urgentes e sucessivas, o blecaute teve uma visibilidade desproporcional à gravidade do problema. Entre dificuldades de apuração à distância, ausência de equipes no território, desafios técnicos do setor elétrico e uma lógica de noticiabilidade que privilegia o eixo Sul-Sudeste, a história do Amapá acabou reduzida a flashes informativos, deixando em segundo plano os impactos sociais, os traumas coletivos e a realidade vivida pelos moradores.
Para o estudante de Jornalismo Lucas Lima, da Universidade Federal do Amapá (Unifap), Lucas Lima, e para milhares outros amapaenses, a sensação de isolamento era absoluta, já que o estado inteiro estava desconectado do restante do país, sem notícias, sem explicações e sem qualquer garantia de que a situação seria normalizada.
“Quando o assunto aparecia na grande mídia, era sempre naquele contexto do apagão, da pandemia, dos hospitais. Mas eu pensava: ‘gente, e o resto?’. Milhares de famílias perderam eletrodomésticos porque o apagão aconteceu justamente quando todo mundo estava em casa, com geladeira, televisão, tudo ligado, e simplesmente a luz apagou. E quem pagou esse prejuízo? Ninguém. Isso nunca apareceu. As pessoas tiveram que arcar com tudo como se fosse culpa delas, quando na verdade foi algo que aconteceu com todo mundo daqui. Outras várias pautas não foram exploradas”.
Esse vácuo informacional evidenciou a importância do jornalismo em momentos de crise. Sem jornal, sem rádio, sem televisão e sem internet, tornou-se complexo entender o que se passava ao redor do estado. Segundo Lucas, boa parte da circulação de notícias acabou acontecendo principalmente pelo boca a boca.
Nas redes sociais, principalmente no Facebook, moradores faziam denúncias e compartilhavam diferentes versões sobre o que poderia ter acontecido, aproveitando os breves momentos em que o sinal de celular voltava. As teorias variavam, da queda de um raio sobre um transformador até suspeitas de falha operacional, até que finalmente se confirmou a verdade: um incêndio na subestação de Macapá.
Foi apenas dias depois, quando o racionamento de energia começou, que o amapaense conseguiu recursos para entender a magnitude do problema. A estudante Andreia Tavares, colega de Lucas na Unifap, lembra que o público no Amapá recorreu ao rádio, demonstrando a resiliência do meio para o acesso à informação.
“Nos três primeiros dias, a gente não conseguia nenhuma informação. Estávamos sem rádio em casa, todas as baterias já tinham acabado, e ficamos totalmente sem internet. Só quando conseguimos acesso a um rádio que entendemos o que realmente tinha acontecido, o incêndio que queimou o transformador e causou tudo aquilo. Acho que foi ali que percebemos, de verdade, a importância de ter um rádio em casa. Acabamos comprando um, porque naquele momento era a única forma possível de acompanhar as notícias”, afirma Andreia.
Ligue o rádio!
Os trechos foram retirados de reportagens da rádio BandNews FM
Enquanto isso, do outro lado do país, estava a grande mídia. Antes da pandemia, nas redações, a rotina dos jornalistas era bem dinâmica. O jornalista chegava, acomodava sua bolsa na mesa de trabalho e já ia em busca do café – o combustível da profissão. Mas, como não há tempo a perder, logo o turno começaria agitado como costuma ser. O som que mais se ouvia nas mesas eram barulhos de teclados, conversas em ligações telefônicas, discussões sobre assuntos quentes e passos apressados de quem ia e voltava da chefia de reportagem. O jornalismo vive de momento e um segundo pode fazer toda a diferença no dia do jornalista.
Em décadas passadas, o processo de apuração era mais lento, pedindo que o jornalista se deslocasse mais e tivesse mais “cara de pau” para conseguir um furo ou ao menos uma informação relevante para a matéria. Com o tempo, a tecnologia foi ganhando espaço e se tornou mais fácil adquirir as mais diversas informações, das mais variadas pautas. Por outro lado, as redações foram encolhendo, com demissões e acúmulo de tarefas. Isso requer checar mais, procurar saber a procedência do fato para não correr o risco de lançar uma barriga – jargão do meio que significa publicar algo falso
ou mal apurado.
Mas esse ritmo, tão marcado pelo contato humano, foi interrompido de forma brusca em 2020. O mundo inteiro precisou adaptar a forma como vivia, adquirindo dinâmicas mais frias e distantes. Isto refletiu diretamente no jornalismo, que agora precisava lidar com trocas entre telas, mensagens de texto, e o improviso – já tão natural à profissão –, colocou-se num lugar novo. Muitos veículos precisaram cortar orçamentos, reduzindo equipes e operando com o mínimo de recursos.
Foi nesse contexto que o blecaute de 2020 atingiu o Amapá. Completamente no escuro e durante uma pandemia, o estado enfrentava um dos apagões mais duradouros da história do Brasil, enquanto o país inteiro se preocupava com diversas outras pautas do período pandêmico. O mundo estava um caos, mas alguns lugares viviam numa situação mais precária do que outros.
Na imprensa especializada, o caso foi coberto quase diariamente. É o que diz o jornalista Rodrigo Polito, que na época trabalhava como repórter no website MegaWhat. “No dia seguinte ao apagão, já começou uma correria enorme por causa do impacto do que tinha acontecido lá. Sempre que cobrimos o setor elétrico, a primeira coisa que fazemos é tentar mapear o alcance da falha: qual foi o dano, quantas pessoas foram afetadas e por quanto tempo. Muitas vezes ocorrem interrupções curtas, que atingem poucas pessoas e são rapidamente resolvidas. Esses casos não teriam um grande valor jornalístico porque não geram um efeito significativo. Mas eu lembro que, no Amapá, a situação foi diferente. Desde o início ficou claro que o impacto era grande, grave e que precisaria ser acompanhado de perto”, relembra.
O jornalista conta que o boletim do ONS (Operador Nacional do Sistema) que chegou às redações nos primeiros dias confirmou a gravidade da situação. Ali, o veículo enxergou o potencial jornalístico do blecaute. A partir disso, começou um grande foco no trabalho de hard news, tentando informar rapidamente o que estava acontecendo.
“No caso do Amapá, a situação era muito específica: diferentemente de outras regiões do setor elétrico, praticamente todo o atendimento de Macapá dependia daquela subestação que sofreu a explosão. Quando ocorre uma explosão desse porte em uma subestação, já se sabe que a recuperação será longa porque não há como colocar o equipamento em operação desse porte rapidamente. É preciso substituir componentes, avaliar o dano e verificar as condições dos demais equipamentos”, explica Polito. O jornalista ainda avalia que, para quem cobria o setor, já era claro que se tratava de um grande acontecimento, com impacto severo, e que teria uma duração prolongada. “Tudo isso acontecendo numa capital do país. Esse foi o peso que consideramos na época ao conduzir a reportagem”.
Apesar da mobilização dos veículos especializados, a narrativa sobre o blecaute não encontrou o mesmo espaço na mídia nacional ao longo dos dias. À medida que o caos persistia no Amapá, outras pautas ganhavam protagonismo no restante do país e a cobertura passava a disputar atenção num cenário já saturado pela pandemia.
A repórter Camila Maia, também da MegaWhat, observa que, apesar da gravidade, os noticiários acabaram passando por cima do blecaute, subnoticiado com o tempo. “A gente acaba olhando pouco para essas regiões, até porque a qualidade do serviço de lá não é tão boa. A distribuidora tinha problemas, como falta de investimentos, há anos. Então, pensando em critérios de noticiabilidade, não tem o impacto que tem quando cai a energia numa região adensada populacionalmente, com uma renda mais alta. Mas, quando ficou vários dias sem luz e vimos o tamanho do problema, fomos atrás de entender os motivos. Foi tudo muito dramático, e demorou muito tempo para ter um desfecho. Lembro de pensarmos ‘não é possível que isso nunca vá acabar’”, afirma.
Segundo a jornalista, na época muitas informações foram desencontradas. O setor elétrico brasileiro é extremamente complexo e em alguns momentos se torna uma missão difícil explicar questões tão técnicas para uma população leiga sobre o assunto. Nem todos os jornalistas que cobriram a ocasião tinham conhecimento para disseminar o que, de fato, estava acontecendo no Amapá. “É difícil colocar isso numa limitação de telejornal, por exemplo, ou rádio. Conseguir explicar isso de forma concisa é muito complicado”, explica. A MegaWhat produziu também materiais explicativos, como FAQs (perguntas frequentes) e videocasts diários, tentando traduzir temas técnicos para o público.
“Era um desafio explicar ao público a complexidade logística do Amapá. O estado não tem conexão terrestre com o restante do país e isso torna qualquer operação muito mais difícil. Mostrar isso no noticiário era fundamental: por que levar um transformador até lá demora tanto? É realmente tão complicado? E a resposta é sim. Chegar ao Amapá já é difícil para uma pessoa com uma mala, agora imagina transportar um equipamento gigantesco, sem estradas e com poucos voos disponíveis”, diz Camila.
A dificuldade em traduzir esses temas não era algo específico da mídia especializada. Nas redações generalistas, jornalistas lidavam com o mesmo desafio: noticiar de forma plena uma crise complexa, à distância, e sem suporte estrutural adequado.
A repórter Letícia Fucuchima na época trabalhava no jornal Valor Econômico, cobrindo principalmente o setor de energia. Para ela, os primeiros a denunciar quando algo não está certo são os próprios moradores e a mídia local. Pensando numa cobertura mais ampla, a TV Globo, por meio do portal G1 e de suas emissoras afiliadas, acaba sendo o veículo que consegue noticiar primeiro por ter mais equipe no estado. Mas, num contexto em que a população não tinha um bom acesso à comunicação, essas denúncias acabaram sendo escassas.
“Como estávamos em casa, e não na redação, o fluxo de informações ficava muito mais difícil. Era mais complicado encontrar as pessoas, fazer contato, confirmar dados. Naquela época, o uso do WhatsApp como ferramenta de trabalho ainda não era tão consolidado como é hoje. Muitos jornalistas ainda dependiam dos telefones comerciais das instituições, que, durante o apagão, simplesmente não funcionavam. Então, realmente houve uma dificuldade grande de apurar informações naquele contexto”, relembra Fucuchima.
“Quem está cobrindo do sudeste acaba enfrentando uma dificuldade para verificar esse tipo de informação. A gente tem que saber se aquilo, de fato, está acontecendo e se você não está lá, é muito difícil de comprovar”, analisa. A jornalista diz que, em casos como esses, é necessário ter um cuidado redobrado para não veicular informações erradas e piorar uma situação já caótica.
Existiu a dificuldade de fazer uma cobertura ampla devido ao contexto da pandemia, mas, para além disso, a infraestrutura para abrigar esses jornalistas também era escassa. Afinal, a rede hoteleira estava saturada, não havia água na região, não era possível sacar dinheiro e nem pagar com cartão de crédito.
A limitação física, intensificada pelas restrições sanitárias da época, também expôs um problema recorrente do jornalismo brasileiro: a ausência de profissionais alocados em regiões do Brasil fora do eixo Rio-São Paulo. Quando não há repórteres no território, a cobertura se baseia exclusivamente na visão de quem observa à distância, sem um contato real com o problema.
O colunista Roberto Rockmann, que na época era da Agência Infra, aponta uma dimensão estrutural do problema, a falta de correspondentes no Norte. Para ele, questões regionais frequentemente ficam sem cobertura aprofundada porque poucos veículos dispõem de verba para enviar repórteres. “Existe uma falta de correspondentes in loco. Há vários sites sobre energia, algum tem correspondente no Nordeste, Sul, Centro-Oeste ou Norte? Algum faz matéria in loco ou só faz quando a matéria é feita e assinada e recebe ‘viajou a convite da empresa’”, indaga.
Com equipes reduzidas e limitações para se deslocar, a cobertura se tornou um desafio logístico. A dificuldade de acesso, somada à pouca visibilidade do Norte nos grandes veículos, fez com que o apagão fosse noticiado, mas raramente compreendido em sua dimensão humana. A falta de interesse público para pautas voltadas ao Norte também é um dificultador na cobertura. Afinal, se não há uma vontade dos leitores de consumirem aquelas notícias, torna-se menos interessante para os veículos tratarem o assunto.
O professor de jornalismo Andrew Costa, da Unifap, encara a questão como um reflexo de desigualdades historicamente pautadas. “Seria quase natural dizer que a Amazônia não é muito Brasil. Quando olhamos para a formação socio-histórica da região, percebemos que ela segue um caminho muito diferente do restante do país. A Amazônia tem um processo próprio de construção política, social, cultural e econômica muito diferente dos demais. Isto se reflete na construção de identidade de populações. Tudo isso faz com que o restante do país tenha um pouco mais de dificuldade para olhar a Amazônia enquanto região”, analisa.
"Seria quase natural dizer que a Amazônia não é muito Brasil. Quando olhamos para a formação socio-histórica da região, percebemos que ela segue um caminho muito diferente do restante do país."
- Andrew Costa, professor
Diante de uma falta de identificação com o restante do país, o foco da imprensa vai para outro lugar, muito mais voltado a um eixo Sudeste. Então, pautas voltadas para os estados amazônicos tendem a ter um menor impacto na mídia. Numa sociedade em que o clique e as visualizações importam, histórias que não mobilizam grandes audiências acabam ficando em segundo plano pela falta de prioridade editorial. Quando essa lógica mercadológica prevalece, regiões correm o risco de ficar – ou permanecer – invisibilizadas, mesmo durante grandes crises.
Para compreender a cobertura desigual entre diferentes regiões do país, é preciso ter um olhar atento para as próprias estruturas da sociedade brasileira. Como explica o professor Andrew, discutir jornalismo também significa discutir capitalismo, dando enfoque na relação histórica entre centro e periferia. No caso da imprensa, essa lógica se materializa no fato de que as principais empresas de comunicação estão concentradas no Centro-Sul do país. Isto acaba ditando aquilo que se torna prioridade na pauta midiática.
Essa centralização afeta diretamente os critérios de noticiabilidade. Segundo o professor, embora fatores políticos e econômicos sejam igualmente influenciáveis, a dimensão territorial se torna também decisiva, já que acontecimentos nas regiões privilegiadas do Brasil tendem a ganhar mais destaque e profundidade do que eventos proporcionalmente graves ocorridos em locais periféricos do país. A dinâmica se relaciona ao papel da imprensa no chamado de agendamento, ou seja, a capacidade dos veículos de comunicação de definir quais temas entram em debate público.
O agendamento influencia desde conversas descontraídas em mesas de bar até na formulação de políticas públicas. “Quando a imprensa volta seu olhar para determinadas contradições sociais, cria condições para que o poder político reconheça esses problemas e busque soluções. Por isso, a mídia carrega uma responsabilidade significativa ao narrar crises humanitárias e denunciar desigualdades. Mesmo que a solução não dependa exclusivamente dos jornalistas, ela necessariamente passa pelo compromisso da imprensa com uma cobertura mais ampla e equânime das diversas realidades do país”, avalia Andrew.
Especialistas e generalistas
A situação se agrava em um ambiente jornalístico cada vez mais pressionado por métricas digitais e com equipes reduzidas. A hierarquização de pautas, antes limitadas pelo espaço físico do jornal impresso, agora é guiada também pela disputa por atenção online. Com menos profissionais escalados e maior demanda por uma produção veloz, temas considerados de baixo retorno capital acabam cedendo espaço para conteúdos populares ou até de entretenimento, que garantem tráfego imediato. “O que aconteceu no Amapá é um exemplo de como casos ocorridos fora do ‘eixo do poder’ têm baixa visibilidade, um fenômeno que tende a piorar com os orçamentos cada vez menores da imprensa tradicional”, opina Roberto Rockmann.
Já Camila Maia acredita que é importante a imprensa não menosprezar acontecimentos que fogem das regiões mais comuns de haver cobertura. “É preciso acompanhar, observar, porque um evento pode ter desdobramentos muito maiores do que imaginamos no primeiro dia. A gente sabe, na teoria, que não se pode deixar de lado o viés social, mas quando você chega ao lugar, ouve as pessoas e vê a situação de perto, tudo ganha outra dimensão. A cobertura passa quase a parecer uma cobertura de guerra. É ali que o trabalho do jornalista fica mais sensível e mais essencial, especialmente em momentos de crise”, avalia Maia.
A jornalista conta que, num mundo ideal, os profissionais teriam a opção de ter mais experiências imersivas como essas. “A primeira vez que eu fui num local de sistema isolado, que eu vi as pessoas tendo acesso à energia pela primeira vez, mudou completamente a forma como eu via o setor elétrico. Foi aí que eu entendi a importância daquilo que eu estava cobrindo”.
Existe, então, uma assimetria histórica na forma como diferentes regiões do país entram no radar da imprensa nacional. Nem sempre temas vindos do Norte conseguem competir, em termos de atenção, com assuntos concentrados nos grandes centros econômicos do Sul-Sudeste. Assim, acontecimentos graves acabam recebendo uma cobertura mais episódica, marcada por flashes informativos que não dão conta da complexidade dos fatos. Isso cria um descompasso de que, enquanto as redações locais produzem um acompanhamento contínuo e detalhado, a imprensa nacional tende a oferecer uma visão mais apressada e limitada, que pouco revela sobre as experiências vividas pela população afetada.
A cobertura da MegaWhat, por ser especializada no setor, acaba se limitando em detalhes técnicos, sendo pouco voltada à escuta ativa à população. Camila reflete que a situação pode ser um problema para quem entra na parte técnica, porque o jornalista começa a ver mais os números do que as pessoas em si. “Não acho nem que seja apenas o técnico, na economia também. O social fica muito em segundo plano”, explica.
Já no Valor Econômico, Letícia relembra que a cobertura feita também não chegou a procurar personagens e buscar um lado social. O veículo busca analisar o impacto financeiro desses eventos, tentando entender como isso afeta empresas e de quem seria a responsabilidade.
“Quando pensamos em cobertura social, percebemos que a atenção jornalística costuma se concentrar em casos que envolvem grandes centros, como operações policiais no Rio ou questões como a Cracolândia em São Paulo. Esses temas acabam ganhando muito mais projeção. Quando o assunto é pobreza ou outras questões sociais, o Norte quase sempre recebe menos apelo, como se já existisse um estereótipo estabelecido de que os estados da região são ‘menos desenvolvidos’ e, por isso, não valeria a pena olhar com profundidade. Fica uma sensação de ‘deixa eles lá’, como se o problema fosse distante demais. Infelizmente, isso ainda acontece”, analisa Fucuchima.
Dentro dos veículos que cobrem o setor de energia, a situação foi semelhante. “Mesmo dentro do nosso recorte, publicamos algumas matérias que eu falo: ‘nossa, isso é muito cabuloso’ e ninguém se importa muito. Não há tanto interesse. É como se as pessoas pensassem ‘não tem ninguém lá mesmo’. Então é como se não importasse”, afirma Camila Maia. A jornalista analisa que quando as pautas são voltadas a questões regionais, o apelo nacional é limitado. “Se quando ocorreu a mega-operação no Rio de Janeiro o foco da imprensa se limitou a uns três dias, que é uma região nobre nesse ponto de vista, que dirá em outras regiões. Ouvíamos muito isso durante a cobertura: ‘por que você tá falando do Amapá? Ninguém liga’”.
Clichês na cobertura da Amazônia
A visibilidade dada ao estado por parte da imprensa, agora mais do que nunca, estrutura-se a partir de pautas ligadas a questões ambientais ou climáticas. Enquanto assuntos como a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas tendem a gerar maior repercussão na mídia, crises sociais e de infraestrutura ficam em segundo plano. Temas como a fragilidade do sistema elétrico amapaense, por exemplo, dificilmente recebem o mesmo espaço, mesmo quando afetam diretamente a vida de centenas de milhares de pessoas.
Além do fato do Amapá não ter uma população expressiva demograficamente, o estado também não concentra grandes centros econômicos ou infraestrutura estratégica capaz de atrair a atenção constante de grandes veículos. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) do estado é, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), de 0,688, um dos mais baixos do país. O Amapá fica atrás apenas do Maranhão (0,676) e de Alagoas (0,684). Os últimos registros são de 2021 e usam como referência informações do IBGE.
Os dados mostram que os estados do Norte e do Nordeste são os que mais enfrentam menores índices, enquanto o Distrito Federal (0,814), São Paulo (0,806) e Santa Catarina (0,792) lideram o ranking. Isto faz com que crises que ocorrem na região dificilmente recebam o mesmo peso que outros eventos semelhantes no Sudeste ou no Sul do país.
Muito alto (0,800 - 1,000)
Alto (0,700 - 0,799)
Médio (0,600 - 0,699)
Baixo (0,500 - 0,599)
Muito Baixo (0,400 - 0,499)
Fonte: IBGE
“Muitas vezes o jornalismo acaba seguindo o que dá audiência, o que o leitor procura, mas acredito que certos temas precisam de espaço independentemente disso. É nosso papel trazer essas histórias, apresentar as visões de quem vive no estado e chamar atenção para os problemas. Se ninguém fala, nada muda. É preciso apontar: ‘olha, existe um problema aqui’. Isso gera cobrança, responsabilização e uma fiscalização mais efetiva, para que os órgãos saibam como agir quando situações semelhantes acontecerem. Esses casos precisam ficar marcados”, reflete Letícia.
Para o repórter Rodrigo Polito, se toda essa situação, do ponto de vista jornalístico, tivesse acontecido em Manaus, por exemplo, a repercussão pública teria sido maior do que foi em Macapá. “Claro que localmente lá no estado o interesse público pesou muito, tanto que víamos a cobertura de jornais locais fazendo um acompanhamento muito mais preciso, mais investigativo. Mas, pensando no grande público, acho que não despertou tanto interesse”, avalia.
"Muitas vezes o jornalismo acaba seguindo o que dá audiência, o que o leitor procura, mas acredito que certos temas precisam de espaço independentemente disso. É nosso papel trazer essas histórias, apresentar as visões de quem vive no estado e chamar atenção para os problemas."
- Letícia Fucuchima, jornalista
Menos de dois minutos
Porém, para quem viveu o apagão, ele não se resumiu a um fato noticioso que circulou por alguns dias e depois desapareceu. Para os moradores, a cobertura feita ao redor do Brasil não foi o suficiente para disseminar o que realmente aconteceu no estado. Pela falta de uma escuta mais ativa à população, os moradores se sentiram invisíveis, como se o lado humano de todo o apagão não fosse de interesse dos veículos. A falta de produção de reportagens com personagens que dessem um contexto do que ocorria no estado foi algo que sensibilizou os amapaenses. Afinal, como falar sobre o episódio sem dar voz aos que sofreram com o caso?
Na ocasião, o Fantástico, revista eletrônica dominical da TV Globo, chegou a produzir duas matérias no programa seguinte ao início do blecaute, e outra após 20 dias do apagão. Ambas edições, porém, dedicaram menos de dois minutos de duração ao blecaute. Na primeira reportagem, a emissora carioca apresentou um panorama geral da interrupção do fornecimento, mencionando a explosão na subestação de Macapá, o início do racionamento e a mobilização das autoridades federais e estaduais. Embora tenha registrado a dimensão técnica do problema, as reportagens trouxeram pouca presença de personagens locais ou um acompanhamento sobre os impactos acumulados nos dias seguintes, elementos que continuariam a se desenvolver ao longo das semanas posteriores.
“Acho que o pior de tudo foi perceber como a mídia nacional simplesmente esqueceu da gente. Depois de tanto sofrimento, veio também essa sensação de exclusão, de não fazer parte. Ninguém falava sobre o que estávamos passando. A gente não tinha internet, não conseguia se comunicar, e quem tinha esse poder, essa capacidade de mostrar o que estava acontecendo, não fez. A reportagem do Fantástico, por exemplo, foi muito rápida e superficial. Logo depois, veio uma matéria sobre a atriz Cláudia Raia, com um tempo muito maior. Aquilo foi revoltante. A gente estava vivendo um caos e parecia que ninguém se importava”, lamentou Walinson.
A presença do Fantástico nos domingos de boa parte dos brasileiros é inegável. Tornou-se quase uma tradição da população fazendo um acompanhamento de grandes acontecimentos nacionais. Quando um programa que tradicionalmente pauta o debate público dedica poucos minutos à situação, isto acaba se convertendo num sinal de desimportância aos amapaenses. Para ilustrar o fato, esta reportagem realizou uma pesquisa dos termos mais pesquisados entre os dias 5 a 29 de novembro daquele ano, usando de comparativo “Apagão no Amapá em 2020” e “Cláudia Raia”, usado como exemplo pelo Walinson. Os dados mostram que no dia da transmissão do Fantástico, as pesquisas para o nome da artista tiveram um pico, enquanto que o colapso no Amapá se manteve em baixa.
Pesquisas por:
Apagão no amapá 2020 x Cláudia Raia
Informações estão disponíveis no Google Trends
Fonte: a autora
Perguntada sobre o que sentiu sobre a mobilização pública e da imprensa sobre o ocorrido no estado, Andreia afirmou não ficou surpresa pela falta de comoção nacional, apesar de achar estranho todo o descaso. “Acho que a nossa empatia, como sociedade, é muito seletiva. Existem corpos que parecem merecer mais compaixão do que outros. Nós, aqui do Amapá, não fazemos parte desses corpos que despertam empatia. É fácil ver o país se comover com tragédias no Sul, por exemplo, mas não com o que acontece no Acre, no Maranhão ou aqui”.
“Acho que a nossa missão é tentar ajudar as pessoas, mais do que informar. A informação é a única coisa que você pode fazer pra ajudar alguém e eu acho que foi isso que faltou nesse caso. Isso falta em muitos casos aqui no jornalismo amapaense e nesse caso no jornalismo nacional também, acho que a gente precisava de um pouquinho mais de ajuda e ela nos foi negada”, reflete Andreia.
Notícia vem, notícia vai
O estudante Lucas analisa que no fazer jornalístico é necessário tomar cuidado para não ser tendencioso, mas é preciso retratar todos os lados de um fato. “Muitas vezes vamos retratar uma realidade que não é a nossa e é essencial saber separar as coisas pensando ‘eu não vivi aquilo, mas isso não significa que não aconteceu’. Então, como mostrar isso? Primeiro ouvindo, chegando ao local, escutando as pessoas e verificando o que de fato ocorreu, sem tomar nada como uma verdade absoluta. Nosso papel na mídia é fundamental: influenciamos opiniões, sensibilizamos o público e damos voz a muita gente”, avalia Lucas.
Segundo o estudante, uma cobertura jornalística sólida precisa combinar diversos fatores e perspectivas. Informações técnicas e posicionamentos de autoridades são importantes para dar o local de especialista na reportagem. Mas são os moradores, as pessoas que sofrem, os responsáveis por trazer a humanização para a matéria. Nesses relatos, surgem elementos que não aparecem em análises especializadas, como aspectos do cotidiano, perdas materiais ou emocionais e situações que revelam as consequências do acontecimento.
“Quando isso é omitido, nós [jornalistas] acabamos sendo, além de covardes, antiéticos e antiprofissionais por deixar de fazer um bom jornalismo. Tudo passa a ser uma cobertura de interesses”, reflete Lucas.
Para a estudante Andreia, o episódio representa um trauma que se estende até agora, cinco anos depois que tudo aconteceu. “Eles [os jornalistas] deram a informação e logo seguiram para a próxima pauta, o que, pela lógica jornalística, eu entendo. A notícia vem, a notícia vai. Mas aquilo era mais do que uma notícia. Era uma realidade que a gente continua propenso a viver, porque nada mudou. Absolutamente nada. Só os nossos traumas. Hoje, toda vez que a luz acaba, eu ainda penso: ‘meu Deus, será que vai acontecer de novo? Será que eu vou passar mais 20 dias sem energia?’”, questiona.
A experiência desencadeou um estado de vigilância constante, no qual qualquer oscilação climática reacende memórias do trauma vivido em 2020. O professor Andrew explica que esse impacto emocional permanece entranhado no cotidiano da população. “É um trauma muito intenso. Quando começa a chover – e a chuva no Norte é muito característica, especialmente no período que chamamos de inverno, quando as precipitações são constantes – as pessoas já sentem aquela ansiedade, aquela angústia, achando que a qualquer momento a energia pode cair. E, se cair, surge o medo de que horas vai voltar”.
Para o professor, ampliar o olhar para o que acontece na periferia do país passa, antes de tudo, pela capacidade dessas próprias regiões de produzirem seus meios de comunicação. “Mais do que esperar que grandes veículos do eixo Rio–São Paulo voltem sua atenção para as questões amazônicas, é fundamental que a Amazônia desenvolva seus próprios modos de produção jornalística. Isso envolve também fortalecer os projetos de formação profissional existentes”, afirma. O curso de Jornalismo da Universidade Federal do Amapá, por exemplo, tem menos de duas décadas e ainda está em processo de consolidação, o que revela como a estrutura de ensino e produção de conhecimento na região é recente do ponto de vista histórico.
Andrew analisa que é essencial ampliar investimentos e incentivar a formação de jornalistas, mestres e doutores em comunicação que possam atuar diretamente no território, produzindo uma cobertura qualificada sobre as especificidades da região e uma reflexão crítica sobre como o jornalismo pode se desenvolver na Amazônia. A ideia de construir uma prática comunicacional alinhada ao “bem-viver” – conceito presente em debates amazônicos contemporâneos – aponta justamente para a necessidade de produzir um jornalismo que dialogue com as realidades locais, respeite seus ritmos e traduza suas contradições a partir de dentro, e não apenas pelo olhar distante dos grandes centros.
“Acho que a nossa missão é tentar ajudar as pessoas, mais do que informar. A informação é a única coisa que você pode fazer pra ajudar alguém e eu acho que foi isso que faltou nesse caso. Isso falta em muitos casos aqui no jornalismo amapaense e nesse caso no jornalismo nacional também, acho que a gente precisava de um pouquinho mais de ajuda e ela nos foi negada”, reflete Andreia.
O blecaute de 2020 expôs uma combinação de fatores que vão desde uma fragilidade do sistema elétrico do Amapá, até limites da cobertura do jornalismo brasileiro. A distância entre os grandes centros do país e a Amazônia influenciou a forma como o fato foi noticiado, contribuindo para um acompanhamento nacional mais breve e menos aprofundado do que o ocorrido no estado. Cinco anos depois, entre memórias de noites sem luz e traumas do que pareceu um pesadelo, o que permanece é a certeza de que o apagão deixou marcas na população e lições importantes para o jornalismo, evidenciando a necessidade de uma cobertura mais sensível às desigualdades na Amazônia.

Amapá em fotos











































